Nosso Senhor, Caminho que devemos seguir[1] e exemplo que devemos imitar[2], sendo rico se fez pobre por amor de vós, para que fôsseis ricos por sua pobreza (2 Cor 8,9). E em sua pregação nos ensina: Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos Céus (MT 5,3), e para quem quer alcançar a perfeição convida: Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me! (MT 19,21).

Esta pobreza evangélica consiste no abandono voluntário das riquezas e dos bens exteriores deste mundo com o fim de procurar unicamente a Deus. É, em palavras de São Jerônimo, “seguir nu a Cristo nu” [3].

Mas a perfeição da pobreza evangélica não reside simplesmente na mera carência de riquezas ou bens materiais (pobreza efetiva), senão no desprendimento e desapego voluntário das mesmas (pobreza afetiva):

Tudo eu considero perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por Ele, eu perdi tudo e tudo eu tenho como lixo, para ganhar a Cristo e ser achado nele. (Fl 3,8).

O conselho evangélico de pobreza, a imitação de Cristo, implica uma vida pobre de fato e de espírito, esforçadamente sóbria e desprendida das riquezas terrenas, e leva consigo a dependência e a limitação no uso e disposição dos bens, segundo as Constituições. Graças a esta renúncia aos bens temporais, o voto de pobreza[4] se volta um culto incessante à divina Providência, já que se tem a certeza de que “o perigo corporal não ameaça àqueles que, com a intenção de seguir a Cristo, abandonam todas suas coisas, confiando-se à divina Providência”[5]. Aquele Pai cheio de bondade que se ocupa dos pássaros e das flores do campo[6], não abandonará aos que com tanta confiança se entreguem a Ele.

Do mesmo modo, a prática deste voto constitui o máximo sinal de humildade: “naquele que é voluntariamente pobre, assim como foi Cristo, a mesma pobreza é indício de máxima humildade”[7].

Por outro lado, a pobreza assumida por Cristo aumenta a liberdade de espírito e o espírito de príncipe que por sua consagração deve possuir o religioso: “…é um bem que encerra todos os bens do mundo. É uma grande soberania; afirmo que se assenhoreia de todos os bens quem nenhum caso faz de os deixar”[8].

Daqui que o religioso não deva servir-se de coisa alguma como se fosse de sua propriedade ou com o coração apegado a isso, não dispondo de nada sem permissão do Superior, e vivendo sempre pobremente. Deste modo se imitará melhor a Jesus Cristo “pobre em seu nascimento, mais pobre em sua vida e paupérrimo na Cruz” [9].

Consagração Religiosa

Consagração Religiosa

Ensina Nosso Senhor Jesus Cristo: vendei vossos bens… fazei bolsas que não se desgastem… ajuntai um tesouro inesgotável no céu… onde está o teu  tesouro, lá também está teu coração (Mt 6,20-21). Estas palavras ressoaram um dia em nosso coração e decidimos, por graça do Espírito Santo, seguir a Cristo pobre mediante o voto de pobreza. A pobreza religiosa pode praticar-se com maior ou menor perfeição. Há quatro graus principais:

1.  Abster-se de possuir algo como se fosse próprio ou de fazer sem permissão qualquer ato de propriedade: é a matéria obrigatória do voto, cujo descumprimento, por pequeno que seja, constitui sempre pecado, grave ou leve segundo os casos.
2.  Privar-se do supérfluo (até da aparência de luxo ou riqueza), contentando-se com o necessário, sem que o coração se apegue a isso. Seu descumprimento não quebraria o voto, mas sim a virtude da pobreza.
3.  Preferir para seu uso  escolher, quando se possa, o de menos valor, o menos agradável, o mais incômodo. Aceitar com gosto, e até pedir, os ofícios mais baixos, os destinos mais difíceis… o que nos faz  parecer mais aos pobres. Logo aqui começa a perfeição da pobreza.
4.  Aceitar com alegria, por amor a Deus, as privações, até nas coisas necessárias, pela Santa pobreza. Gloriar-nos como São Paulo na fome e sede, nas privações de todo gênero, no frio e nudez (2 Cor 11,27). De São Francisco de Assis se dizia que “ninguém tão ambicioso de ouro como ele zeloso da pobreza…” [10]. Este grau constitui a perfeição da pobreza.

Todavia pode praticar-se mais intensamente o quarto grau de pobreza, conquistando assim o desprendimento total, não só dos bens materiais – objeto próprio da virtude da pobreza – mas também de tudo que não seja o mesmo Deus, o que supõe a perfeição da caridade e a santidade completa e consumada. Como diz São João da Cruz, “amar é despojar-se por Deus de tudo o que não é Deus” [11].

Já não lhe importará nada:

  • da estima e boa opinião dos homens;
  • da saúde e forças corporais;
  • dos cargos ou ofícios que possam lhe dar ou lhe tirar;
  • dos sucessos prósperos ou adversos que possam acontecer;
  • de morrer jovem ou velho.

“Viva como se não houvesse neste mundo mais que Deus e ela (a alma), para que não possa seu coração ser detido por coisa humana” [12]. E “nada, nada até deixar a pele e o restante por Cristo” [13], “… Quando com próprio amor não o quis, deu-se-me tudo sem ir atrás disso… depois que me coloquei em nada, achei que nada me falta” [14]. Em definitiva, devemos amar tudo o que Deus quer que amemos, sem ser escravos de nossos afetos às criaturas, quer dizer, amar sem encadear-nos, possuir sem ficar presos, usar sem gozos egoístas, conservar a completa independência, buscar em tudo e por tudo a glória de Deus.

Fazemos nossa a instrução que deu Frei Francisco dos Anjos aos doze apóstolos do México, prevenindo-lhes que irão “à vinha, não alugados por preço algum, como outros, mas sim como verdadeiros filhos de tão grande Pai, buscando não vossas próprias coisas, senão as que são de Jesus Cristo… O qual desejou ser tido como o último e o menor dos homens, e quis que vós, seus verdadeiros filhos fossem últimos, escoiceando a glória do mundo, abatidos por vileza, possuindo a altíssima pobreza, e sendo tais que o mundo vos tivesse em escárnio e vossa vida julgasse por loucura, e seu fim sem honra: para que assim feitos loucos ao mundo convertêsseis a esse mesmo mundo com a loucura da pregação. E não vos turvem porque não sois alugados por preço algum, mas antes enviados sem promessa de salário”[15].


[1] Cf. Jo 14,6.
[2] Cf. 1 Pe 2,21
[3] Ad Rusticum Monachum, Ep. 125: ML 22,1085.
[4] Cf. CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, c. 600
[5] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, 186, 3, ad 2.
[6] Cf. Mt 6,25-34.
[7] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, III, 40, 3, ad 3.
[8] Santa Teresa de Jesus, Caminho da Perfeição, cap. II, nº 5.
[9] São Bernardo, Vitis Mystica, cap. II.
[10] Tomás de Celano, Vida de São Francisco, Vida Segunda, Ed. BAC, Madrid 1975, p. 375.
[11] Subida ao Monte Carmelo, L. II, cap. 5, 7.
[12] São João da Cruz, Ditos de luz e amor, 143.
[13]São João da Cruz, Avisos e Sentenças espirituais, 68, 4.
[14]São João da Cruz, Monte de Perfeição, Obras Completas, Ed. BAC, Madrid, 1982, p. 74
[15]Frei Jerônimo de Mendieta História Eclesiástica Indiana, México 1945, L. III, cap. 9.