Vida Comunitária
(Constituições 90-99)
Importância
Embora seja muito certo, em um sentido, que a vida comunitária é máxima penitencia1, é também muito certo que na matemática um mais um são dois, mas um homem mais outro homem são dois mil. Um homem junto com outro em valor e em força cresce, o temor desaparece, e escapa de qualquer armadilha.
A formosura e os bens da vida fraterna em comum são muito maiores que as dificuldades que suporta: Oh, como é bom, como é agradável para os irmãos unidos viverem juntos! (Sal 133,1).
É justamente pela vida fraterna que nos mostramos, unidos em Cristo: todos vós sois um em Cristo Jesus (Gal 3,8), como uma família religiosa peculiar e deve realizar-se de tal maneira que seja para todos uma ajuda mútua no cumprimento da própria vocação. Pela comunhão fraterna2 enraizada e fundamentada na caridade, os membros têm que ser exemplo da reconciliação universal em Cristo, é dizer, que devemos ser como “uma Igreja doméstica”3.
Essência
Em nossas comunidades devemos tratar de viver o que é a essência do Reino que Jesus Cristo veio inaugurar na terra: O Reino de Deus… é justiça, alegria e paz no Espírito Santo (Rm 14,17). Coisas estas que se identificam com a santidade, que é o que, em última instância, faz que nossas comunidades sejam autênticas. Quando não existe não há lei, nem Superior, que possa evitar a desagregação, como dizia São Pio X: “Onde falta a santidade, inevitável é que entre a corrupção”4.
Justiça
Queremos que a justiça, que dá a cada um o que é seu, a Deus latria, ao superior veneração e obediência, da mesma forma com respeito ao inferior serviço, a todos –segundo medida– caridade, essa virtude tão formosa, que nem o luzeiro da manhã nem o vespertino podem lhe ser comparados em beleza, resplandeça em nossas comunidades.
Diz o Papa João Paulo II que para São Gregório VII a justiça é “a ordem de Deus no mundo; ela comporta que todas as coisas humanas, desde as menores até as maiores, estejam ordenadas segundo a vontade e a lei de Deus, que o homem não seja deformado pelo pecado, senão plasmado a imagem de Deus”5.
Alegria
Em relação à alegria, como fruto do Espírito Santo e efeito da caridade, terá que tratar, por todos os meios, que “ninguém seja perturbado ou entristecido na casa de Deus6. Para isso é totalmente imprescindível viver a caridade fraterna: “Isto é: tenham por mais dignos aos demais (Rom 12,10); suportem com paciência sem limites suas debilidades, tanto corporais como espirituais; ponham todo seu empenho em obedecer-vos uns aos outros; procurem todos o bem dos demais, antes que o seu próprio; ponham em prática um sincero amor fraterno; vivam sempre no temor e amor de Deus; amem a seu Abade (superior) com uma caridade sincera e humilde; não anteponham nada absolutamente a Cristo, o qual nos levará todos juntos à vida eterna”7.
De tal modo se deveria viver a caridade fraterna que ao ver nossa vida se dissesse: “Olhai como se amam entre si e como estão dispostos a morrer uns por outros!”8, ou, como também se dizia dos primeiros cristãos, “amam-se ainda antes de conhecer-se”9. E não se acredite que isto é uma utopia, já que muitas vezes escutamos expressões parecidas.
Devemos ter o firme propósito de salvar sempre a caridade, apesar da possibilidade de haver falsos irmãos10, que se intrometam para espiar a liberdade que temos em Cristo Jesus (Gal 2,14), que parecem estar conosco, mas não são dos nossos11. A caridade não morrerá jamais! (1 Cor 13,8). De cada um de nós dever-se-ia fazer a biografia substituindo a palavra “caridade” por nosso nome no hino de São Paulo aos Coríntios, onde descreve com duas características gerais, oito notas negativas e cinco positivas, o que deve ser o amor fraterno: “A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não é arrogante. Nem escandalosa. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (1 Cor 13,4-7). “O amor é formalmente a vida da alma, como a alma é a vida do corpo”12.
A paz
Em relação à paz, é também fruto do Espírito Santo e efeito da caridade, porque por ela ordenamos a Deus todos nossos afetos, e esta ordem implica a paz. As almas dissipadas não se deixam guiar pelo Espírito Santo, nem vivem, portanto, na paz de Cristo. Esta paz é um dos tantos benefícios que Nosso Senhor trouxe ao mundo, e é efeito de sua Paixão redentora: aprouve a Deus… e por seu intermédio reconciliar consigo todas as criaturas, por intermédio daquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus. (Col 1,19-20).
Esta paz interior a alcança o homem quando elimina o conflito dentro de si, dada às vezes pela luta entre a carne e o espírito13, ou pela luta na vontade de dois amores contrários.
A paz pode ser falsa: isto ocorre quando permanece em um bem aparente, ou quando se obtém, pelo meio que seja, fazer a vontade própria. A paz verdadeira será perfeita somente na Pátria Celeste; nesta terra é imperfeita, mas sempre podemos conservá-la, ainda em meio das maiores contrariedades, das maiores tribulações e das maiores tragédias, conforme a admoestação do Apóstolo: Não vos inquieteis com nada!… e a paz de Deus, que excede toda a inteligência, haverá de guardar vossos corações e vossos pensamentos em Cristo Jesus (Fl 4,6-7).
Conquistamos esta paz fazendo que o peso de nossas almas seja o amor, pelo qual nosso coração é levado ao que ama: “meu amor é meu peso”14. Se esse amor se põe em Cristo, ali se encontra a paz, já que Ele é o fundamento de tudo: tudo foi criado por Ele e para Ele… tudo subsiste nele (Col 1,16-17). E a paz deve buscar-se dentro, não fora, senão nos encherá de preocupações inúteis e encherá o coração de remorsos contra tudo o que nos rodeia, porque não depende a paz de nossa alma para que desapareçam os obstáculos exteriores, senão o afeto ao pecado: De onde vêm as lutas e as contendas entre vós? Não vêm elas de vossas paixões, que combatem em vossos membros? (Tg 4,1). A paz deve buscar-se dentro porque Deus nos é interior: “Tu eras interior à minha mais funda interioridade”15.
- Cf. F. CERVÓS, Vida do angélico jovem São João Berchmans, Madrid 1920, p. 150: “Mea maxima poenitentia vita communis”.
- Cf. 1 Pe 1,22
- LG, 11.
- SÃO PIO X, Exortação ao clero católico, Haerent Animo (04/08/1908), 5.
- Homilia durante a Missa celebrada na praça de Concórdia (26/5/1985), 1: OR (07/07/1985), p. 7.
- SÃO BENTO, Santa Regra, XXXI, 19
- SÃO BENTO, Santa Regra, LXXII, 1-12.
- TERTULIANO, Apologética, ML 1,534.
- MINUCIO FÉLIX, Octavias, ML 3,289.
- Cf. 2 Cor 11,26.
- Cf. 1 Jo 2,19.
- SANTO TOMÁS DE AQUINO, S. Th., II-II, 23, 2, ad 2. Jo 2,19.
- Cf. Mt 26,41.
- SANTO AGOSTINHO, Confissões, XIII, cap. 9, 10.
- SANTO AGOSTINHO, Confissões, III, cap. 6, 11.